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domingo, 27 de maio de 2018

Câncer de Próstata, Linfadenectomia e o Fenômeno de Will Rogers

Calling Bullshit - The Will Rogers Effect.
Curso de Primavera sobre Vies Cognitivo aplicado a Big Data
Washington University, EUA entre 2017-2018.

Will Rogers (1879 - 1935) foi um humorista e colunista americano da cidade de Oklahoma. Em um de seus ensaios, ele escreveu a seguinte frase:

When the Okies left Oklahoma and moved to California, they raised the average intelligence level in both states.”

Para Rogers, seus conterrâneos eram muito mais inteligentes que seus patriotas do litoral oeste, e apenas os menos inteligentes mudavam para fora da cidade procurando morar perto da praia. Essa migração resultava em um interessante efeito: a média de inteligência aumentava no estado de Oklahoma e também aumentava na Califórnia.

Utilizando o R, criei duas amostras aleatórias de n=100 com distribuição normal de médias 120 para o QI da população de Oklahoma e 95 para a Californiana. Considerei desvio-padrão de 20 para ambas. Os dados são fictícios (claro! J).

Vamos à figura:



O primeiro histograma representa a distribuição dos QIs da amostra de pessoas da Califórnia e o segundo de Oklahoma. A linha “a” está marcando a média da Califórnia e a “b” a média de Oklahoma.

Observar que o QI médio de Oklahoma está acima do da Califórnia. A seta grande escura mostra o movimento migratório de pessoas abaixo da média de QI (em Oklahoma) para Califórnia. Essas pessoas, na verdade, estão acima da média da Califórnia.

Como resultado, o movimento de saída de elementos à esquerda (abaixo) da média de um conjunto, elevará essa média. E a entrada de elementos à direita (acima) da média acabará também por elevar a média do outro conjunto.

Esse é um fenômeno estatístico bastante comum no meio médico, onde utilizamos pontos-de-corte variáveis (e mutáveis com o tempo) quando classificamos as doenças.

Para quem ainda não pegou a ideia, vou representa-la com um conjunto numérico menor e um pouco extremo.

A= {2, 3, 5, 6, 70}, Média= 17,2

B= {1800, 1900, 2000, 2010}, Média= 1927,5

O elemento 1800 está abaixo da média em B, mas está acima da média do conjunto A. Vejamos o que acontece quando o elemento 1800 de B migra para A.

A= {2, 3, 5, 6, 70, 1800}, Média= 314,33

B= {1900, 2000, 2010}, Média= 1970

A média aritmética de ambos os conjuntos aumenta. Este é o fenômeno de Will Rogers! Não sei se Rogers tinha consciência do substrato matemático por trás de sua frase, mas o fenômeno ganhou seu nome entre os estatísticos.

Para que o fenômeno de Will Rogers seja possível, duas condições devem ser aceitas simultaneamente:
- O elemento migratório deve estar abaixo da média do conjunto de origem;
- O elemento migratório deve estar acima da média do conjunto de destino;

Em outras palavras, o elemento migratório deve estar entre as médias, abaixo da média do conjunto de origem e acima da média do conjunto de destino. Isso implica dizer que a média do conjunto de origem deve ser maior que a média do conjunto de destino.

E a linfadenectomia?... 👀

Atualmente, um dos temas mais quentes da uro-oncologia é se a linfadenectomia durante a prostatectomia radical para tratamento curativo do câncer de risco intermediário ou alto melhora os resultados de mortalidade.

Via de regra, temos 4 possibilidades de condução nodal durante a realização da prostatectomia radical:

- Não realizar linfadenectomia
- Realizar linfadenectomia limitada (apenas obturatória)
- Realizar linfadenectomia padrão (obturatória e ilíaca externa)
- Ou realizar linfadenectomia estendida (obturatória, ilíacas externa, interna e comum e pré-sacral).

A revisão sistemática mais extensa e atual que temos a respeito é a de Fossati et al., 2017. Foram 66 estudos somando 275.269 pacientes, incluindo 3 RCTs (1 com relato de desfechos oncológicos). Em 26 páginas, os autores não evidenciaram benefício oncológico ou funcional decorrentes da linfadenectomia (qualquer extensão) versus não fazer.

Esse resultado vai de encontro a outra revisão sistemática (Choo et al., 2017) de 7 estudos retrospectivos que demonstrou redução de 30% no Hazard para falha bioquímica em benefício aos pacientes que realizaram linfadenectomia estendida.

Analisando separadamente os trabalhos disponíveis na literatura, os retrospectivos mostram tendência de benefício da linfadenectomia associada à sua extensão. Ou seja, quanto mais linfonodos se retira, maior a probabilidade de benefício na sobrevida livre de recorrência.

Abdollah et al., em 2014, publicaram  excelente coorte comparativa, originada de dados de pacientes de riscos intermediário e alto operados no Hospital San Raffaele de Milão. Os autores concluíram que ressecar 14 linfonodos ou mais reduz significativamente a mortalidade por câncer depois de 20-30 meses de seguimento, independentemente dos linfonodos serem positivos ou negativos. Entretanto, a presença de mais de 2 linfonodos positivos foi preditor independente de mal prognóstico.

Esse é um estudo chave sobre a linfadenectomia estendida. O ponto de corte de 14 linfonodos hoje é admitido como critério de acurácia no estadiamento nodal.

Outras séries publicadas (CaPSURE, Cleveland Clinic, Suíça e SEER) mostraram resultados heterogêneos.

Berglund et al., 2007 com dados do CaPSURE não evidenciaram benefício da linfadenectomia limitada em comparação à não-linfadenectomia no desfecho de falha bioquímica em 5 anos.

Weight et al., 2008 publicaram dados da Cleveland Clinic não evidenciando efeito da linfadenectomia na sobrevida livre de recorrência. Porém os pacientes eram de baixo risco.

O estudo de Joslyn et al., 2006 (dados do SEER) mostrou correlação positiva entre número de linfonodos retirados e sobrevida livre de recorrência clínica. E Yuh et al., 2015 demonstraram que a linfadenectomia estendida melhora o desfecho de sobrevida livre de recorrência bioquímica em pacientes de risco intermediário.

É interessante notar que nenhum desses estudos pode descartar com confiança vieses de seleção decorrentes do fenômeno de Will Rogers.

O raciocínio é direto: quanto mais linfonodos retiramos, melhor estratificamos o risco dos pacientes e melhor identificamos os grupos com melhores e piores prognósticos.

Sabemos que se o paciente tem linfonodo positivo seu risco de falha terapêutica e recorrência tumoral estará aumentado (lembrar dos estudos de Messing, 1999, 2006; Touijier, 2014, 2017; Abdollah 2014, 2018; entre outros). Daí, ao estender a linfadenectomia, ampliamos o número de linfonodos retirados e aumentamos nossa acurácia em identificar pacientes verdadeiramente N-, "N poucos+" e "N muitos+".

A ilustração a seguir ajuda a entender:

Teremos três populações pós-tratamento: a azul de pacientes nodos negativos na peça cirúrgica (pN-), a amarela com poucos nodos positivos (pN poucos+) e a vermelha com muitos nodos positivos (pN muitos+).



Historicamente, os pacientes pN- apresentam melhores resultados de sobrevida quando comparados aos demais grupos. A linfadenectomia limitada (ou padrão) foi realizada ao longo dos anos como gold-standard of care. Como a extensão dos nodos retirados era limitada, é bem possível que muitos pacientes N+ tenham sido classificados erroneamente como N-, simplesmente por não terem seus linfonodos positivos retirados durante a cirurgia.

O que acontece com a linfadenectomia estendida é que estamos melhorando nossa ferramenta classificatória. Ao retirar mais linfonodos, aumentamos a acurácia diagnóstica e selecionamos melhor os pacientes em cada grupo.

Assim, ao terem mais linfonodos retirados, pacientes semelhantes ao grupo histórico azul, que outrora seriam classificados como pN-, teriam mais probabilidade de serem reestadiados para os grupos amarelo ou vermelho (conforme o movimento das setas 1 e 2).

É provável que indivíduos com sobrevida abaixo da média em cada grupo tenham maior probabilidade de serem verdadeiramente N+, mas não diagnosticados pela linfadenectomia padrão. Com a linfadenectomia estendida, temos uma maior amostragem nodal e, consequentemente, maior confiabilidade em dizer se esse paciente é verdadeiramente N+ ou N- e qual sua densidade nodal positiva.

Portanto, o efeito da linfadenectomia estendida seria o de promover uma verdadeira migração de sujeitos de menor densidade nodal positiva (ou seja, de menor risco, outrora classificados como pN- devido a inacurácia diagnóstica) para os grupos históricos de maior risco, diluindo o risco desses últimos e “purificando” a amostra do grupo pN-, o que levaria a impressão de aumentando da sobrevida média de ambos, origem e destino (seta 1).

Isso é bem ilustrado pelo estudo de Joslyn et al., 2006 com dados do SEER. A análise retrospectiva mostrou que pacientes que tiveram 10 ou mais linfonodos negativos removidos tiveram maior sobrevida livre de recorrência. Na verdade, a remoção de muitos linfonodos negativos serviu como ferramenta de alta acurácia seletiva de um grupo de melhor prognóstico.

Em relação ao número de nodos positivos, o raciocínio é o mesmo. Maior extensão da linfadenectomia aumenta a chance de retirar mais linfonodo positivo levando a uma migração de pacientes de grupos historicamente de melhor prognóstico para grupos de pior prognóstico (seta 2).

O efeito se torna ainda pior se considerarmos que no estadiamento TNM do câncer de próstata, só temos dois níveis, N0 e N1, com o N1 correspondendo a qualquer quantidade de N+. Mesmo a mais recente edição do AJCC e UICC publicada no início do ano (8a Edição, 2018) trás uma subcategoria pNmi (micrometástase), mas não faz menção ao número de linfonodos positivos.

Anulando o Fenômeno de Will Rogers

Uma forma de reduzir o viés causado pelo fenômeno de Will Rogers é utilizar a densidade de linfonodos positivos (N+/Total) como variável independente contínua em um modelo de Cox por exemplo. Infelizmente os estudos tem dicotomizado essa variável para definir grupos de maior risco como visto em Abdollah et al., 2014.

A melhor forma de lidar com o viés de seleção promovido por esse fenômeno é (adivinhe... ele mesmo! 😊) o Ensaio Clínico Randomizado (RCT). No RCT, os fatores de confusão são randomicamente distribuídos entre os grupos. Pacientes N-, poucos N+ e muitos N+ serão semelhantemente distribuídos entre os grupos antes do tratamento, ainda na baseline no início do estudo. A única característica distinta entre os grupos seria o próprio tratamento, ou seja, a extensão da linfadenectomia. Qualquer diferença na sobrevida seria então em decorrência dessa característica.

O único estudo randomizado disponível com resultados oncológicos de 1 ano é o de Lestingi et al., 2015 conduzido em São Paulo com fundos da FAPESP. Esse estudo falhou em demonstrar ganho de sobrevida livre de recorrência bioquímica após linfadenectomia estendida versus limitada. Entretando, o seguimento é de apenas 1 ano e o estudo ainda está em andamento. Lembrar que, de acordo com os dados retrospectivos, seriam necessários de 20-30 meses para observarmos diferença entre os grupos. J

Em 2014, um grupo chinês publicou um estudo prospectivo com resultado favorável à linfadenectomia. Pouco tempo depois esse estudo foi removido da literatura pela Elsevier por terem descoberto que o autor principal falsificara parte dos dados.

Muito ainda se tem a esperar da linfadenectomia. O que sabemos atualmente é que ela é uma ótima ferramenta estadiadora com grande utilidade para selecionar pacientes para tratamentos complementares como hormonio-terapia e radioterapia, mas, até o momento, carece da demonstração de efeito benéfico intrínseco. Podemos dizer que a linfadenectomia estendida teria então um benefício indireto na sobrevida ao otimizar o estadiamento nodal e consequentemente auxiliar na indicação de terapias complementares que, comprovadamente, melhoram os desfechos.


Referências:

Lestingi, et al. Extended Vs Limited Pelvic Lymphadenectomy During Radical Prostatectomy For Intermediate And High risk Prostate Cancer: A Prospective Randomized Trial. The Journal Of Urology. Vol. 193, No. 4s, Supplement, Monday, May 18, 2015. Abstract em https://www.jurology.com/article/S0022-5347(15)02876-1/pdf

Choo MS, et al. Extended versus Standard Pelvic Lymph Node Dissection in Radical Prostatectomy on Oncological and Functional Outcomes: A Systematic Review and Meta-Analysis. Ann Surg Oncol. 2017 Jul;24(7):2047-2054. doi: 10.1245/s10434-017-5822-6.

Fossati N, et al. The Benefits and Harms of Different Extents of Lymph Node Dissection During Radical Prostatectomy for Prostate Cancer: A Systematic Review. Eur Urol. 2017 Jul;72(1):84-109. doi: 10.1016/j.eururo.2016.12.003

Abdollah F, et al. More Extensive Pelvic Lymph Node Dissection Improves Survival in Patients with Node-positive Prostate Cancer. EUROPEAN UROLOGY 6 7 (2 01 5 ) 2 1 2 – 2 1 9. http://dx.doi.org/10.1016/j.eururo.2014.05.011

Berglund RK, et al. Limited Pelvic Lymph Node Dissection at the Time of Radical Prostatectomy Does Not Affect 5-Year Failure Rates for Low, Intermediate and High Risk Prostate Cancer: Results From CaPSURE. THE JOURNAL OF UROLOGY. Vol. 177, 526-530, February 2007. DOI:10.1016/j.juro.2006.09.053

Joslyn Sa, Et Al. Impact Of Extent Of Lymphadenectomy On Survival After Radical Prostatectomy For Prostate Cancer. Urology 68: 121–125, 2006. Doi:10.1016/J.Urology.2006.01.055

Weight Cj, Et Al. Limited Pelvic Lymph Node Dissection Does Not Improve Biochemical Relapse-Free Survival At 10 Years After Radical Prostatectomy In Patients With Low-Risk Prostate Cancer. Urology 71: 141–145, 2008. Doi:10.1016/J.Urology.2007.08.027

Yuh B, Et Al. Reduction In Early Biochemical Recurrence Intermediate Risk Patients Undergoing Robotassisted Extended Pelvic Lymphadenectomy For Prostate Cancer. The Journal Of Urology. Vol. 193, No. 4s, Supplement, Tuesday, May 19, 2015.

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