Calling Bullshit - The Will Rogers Effect.
Curso de Primavera sobre Vies Cognitivo aplicado a Big Data
Washington University, EUA entre 2017-2018.
Will Rogers (1879 - 1935)
foi um humorista e colunista americano da cidade de Oklahoma. Em um de seus
ensaios, ele escreveu a seguinte frase:
“When the Okies left Oklahoma and moved to California, they raised the average intelligence level in both states.”
Para Rogers, seus conterrâneos eram muito
mais inteligentes que seus patriotas do litoral oeste, e apenas os menos
inteligentes mudavam para fora da cidade procurando morar perto da praia. Essa
migração resultava em um interessante efeito: a média de inteligência aumentava
no estado de Oklahoma e também aumentava na Califórnia.
Utilizando o R, criei duas amostras aleatórias
de n=100 com distribuição normal de médias 120 para o QI da população de
Oklahoma e 95 para a Californiana. Considerei desvio-padrão de 20 para ambas.
Os dados são fictícios (claro! J).
Vamos à figura:
O primeiro histograma representa a
distribuição dos QIs da amostra de pessoas da Califórnia e o segundo de
Oklahoma. A linha “a” está marcando a média da Califórnia e a “b” a média de
Oklahoma.
Observar que o QI médio de Oklahoma está
acima do da Califórnia. A seta grande escura mostra o movimento migratório de
pessoas abaixo da média de QI (em Oklahoma) para Califórnia. Essas pessoas, na
verdade, estão acima da média da Califórnia.
Como resultado, o movimento de saída de
elementos à esquerda (abaixo) da média de um conjunto, elevará essa média. E a
entrada de elementos à direita (acima) da média acabará também por elevar a
média do outro conjunto.
Esse é um fenômeno estatístico bastante comum
no meio médico, onde utilizamos pontos-de-corte variáveis (e mutáveis com o
tempo) quando classificamos as doenças.
Para quem ainda não pegou a ideia, vou
representa-la com um conjunto numérico menor e um pouco extremo.
A= {2, 3, 5, 6, 70}, Média= 17,2
B= {1800, 1900, 2000, 2010}, Média= 1927,5
O elemento 1800 está abaixo da média em B, mas
está acima da média do conjunto A. Vejamos o que acontece quando o elemento
1800 de B migra para A.
A= {2, 3, 5, 6, 70, 1800}, Média= 314,33
B= {1900, 2000, 2010}, Média= 1970
A média aritmética de ambos os conjuntos
aumenta. Este é o fenômeno de Will Rogers! Não sei se Rogers tinha consciência
do substrato matemático por trás de sua frase, mas o fenômeno ganhou seu nome
entre os estatísticos.
Para que o fenômeno de Will Rogers seja
possível, duas condições devem ser aceitas simultaneamente:
- O elemento migratório deve estar abaixo da
média do conjunto de origem;
- O elemento migratório deve estar acima da
média do conjunto de destino;
Em outras palavras, o elemento migratório
deve estar entre as médias, abaixo da média do conjunto de origem e
acima da média do conjunto de destino. Isso implica dizer que a média do
conjunto de origem deve ser maior que a média do conjunto de destino.
E a linfadenectomia?... 👀
Atualmente, um dos temas mais quentes da
uro-oncologia é se a linfadenectomia durante a prostatectomia radical para
tratamento curativo do câncer de risco intermediário ou alto melhora os
resultados de mortalidade.
Via de regra, temos 4 possibilidades de
condução nodal durante a realização da prostatectomia radical:
- Não realizar linfadenectomia
- Realizar linfadenectomia limitada (apenas
obturatória)
- Realizar linfadenectomia padrão
(obturatória e ilíaca externa)
- Ou realizar linfadenectomia estendida
(obturatória, ilíacas externa, interna e comum e pré-sacral).
A revisão sistemática mais extensa e atual
que temos a respeito é a de Fossati et al., 2017. Foram 66 estudos somando
275.269 pacientes, incluindo 3 RCTs (1 com relato de desfechos oncológicos). Em
26 páginas, os autores não evidenciaram benefício oncológico ou funcional
decorrentes da linfadenectomia (qualquer extensão) versus não fazer.
Esse resultado vai de encontro a outra
revisão sistemática (Choo et al., 2017) de 7 estudos retrospectivos que
demonstrou redução de 30% no Hazard para falha bioquímica em benefício
aos pacientes que realizaram linfadenectomia estendida.
Analisando separadamente os trabalhos
disponíveis na literatura, os retrospectivos mostram tendência de benefício da
linfadenectomia associada à sua extensão. Ou seja, quanto mais linfonodos se
retira, maior a probabilidade de benefício na sobrevida livre de recorrência.
Abdollah et al., em 2014, publicaram excelente coorte comparativa, originada de
dados de pacientes de riscos intermediário e alto operados no Hospital San
Raffaele de Milão. Os autores concluíram que ressecar 14 linfonodos ou mais
reduz significativamente a mortalidade por câncer depois de 20-30 meses de
seguimento, independentemente dos linfonodos serem positivos ou negativos.
Entretanto, a presença de mais de 2 linfonodos positivos foi preditor
independente de mal prognóstico.
Esse é um estudo chave sobre a
linfadenectomia estendida. O ponto de corte de 14 linfonodos hoje é admitido
como critério de acurácia no estadiamento nodal.
Outras séries publicadas (CaPSURE, Cleveland
Clinic, Suíça e SEER) mostraram resultados heterogêneos.
Berglund et al., 2007 com dados do
CaPSURE não evidenciaram benefício da linfadenectomia limitada em comparação à
não-linfadenectomia no desfecho de falha bioquímica em 5 anos.
Weight et al., 2008 publicaram dados da
Cleveland Clinic não evidenciando efeito da linfadenectomia na sobrevida livre
de recorrência. Porém os pacientes eram de baixo risco.
O estudo de Joslyn et al., 2006 (dados
do SEER) mostrou correlação positiva entre número de linfonodos retirados e
sobrevida livre de recorrência clínica. E Yuh et al., 2015 demonstraram
que a linfadenectomia estendida melhora o desfecho de sobrevida livre de
recorrência bioquímica em pacientes de risco intermediário.
É interessante notar que nenhum desses
estudos pode descartar com confiança vieses de seleção decorrentes do fenômeno
de Will Rogers.
O raciocínio é direto: quanto mais linfonodos
retiramos, melhor estratificamos o risco dos pacientes e melhor identificamos
os grupos com melhores e piores prognósticos.
Sabemos que se o paciente tem linfonodo positivo seu risco de falha terapêutica e recorrência tumoral estará aumentado (lembrar dos estudos de
Messing, 1999, 2006; Touijier, 2014, 2017; Abdollah 2014, 2018; entre outros).
Daí, ao estender a linfadenectomia, ampliamos o número de linfonodos retirados
e aumentamos nossa acurácia em identificar pacientes verdadeiramente N-, "N
poucos+" e "N muitos+".
A ilustração a seguir ajuda a entender:
Teremos três populações pós-tratamento: a azul de pacientes
nodos negativos na peça cirúrgica (pN-), a amarela com poucos nodos positivos
(pN poucos+) e a vermelha com muitos nodos positivos (pN muitos+).
Historicamente, os pacientes pN- apresentam
melhores resultados de sobrevida quando comparados aos demais grupos. A
linfadenectomia limitada (ou padrão) foi realizada ao longo dos anos como gold-standard
of care. Como a extensão dos nodos retirados era limitada, é bem possível
que muitos pacientes N+ tenham sido classificados erroneamente como N-,
simplesmente por não terem seus linfonodos positivos retirados durante a
cirurgia.
O que acontece com a linfadenectomia
estendida é que estamos melhorando nossa ferramenta classificatória. Ao retirar
mais linfonodos, aumentamos a acurácia diagnóstica e selecionamos melhor os
pacientes em cada grupo.
Assim, ao terem mais linfonodos retirados,
pacientes semelhantes ao grupo histórico azul, que outrora seriam classificados
como pN-, teriam mais probabilidade de serem reestadiados para os grupos
amarelo ou vermelho (conforme o movimento das setas 1 e 2).
É provável que indivíduos com sobrevida
abaixo da média em cada grupo tenham maior probabilidade de serem
verdadeiramente N+, mas não diagnosticados pela linfadenectomia padrão. Com a
linfadenectomia estendida, temos uma maior amostragem nodal e,
consequentemente, maior confiabilidade em dizer se esse paciente é
verdadeiramente N+ ou N- e qual sua densidade nodal positiva.
Portanto, o efeito da linfadenectomia
estendida seria o de promover uma verdadeira migração de sujeitos de menor
densidade nodal positiva (ou seja, de menor risco, outrora classificados como
pN- devido a inacurácia diagnóstica) para os grupos históricos de maior risco, diluindo o
risco desses últimos e “purificando” a amostra do grupo pN-, o que levaria a impressão de aumentando da sobrevida
média de ambos, origem e destino (seta 1).
Isso é bem ilustrado pelo estudo de Joslyn et
al., 2006 com dados do SEER. A análise retrospectiva mostrou que pacientes
que tiveram 10 ou mais linfonodos negativos removidos tiveram maior sobrevida
livre de recorrência. Na verdade, a remoção de muitos linfonodos negativos serviu
como ferramenta de alta acurácia seletiva de um grupo de melhor prognóstico.
Em relação ao número de nodos positivos, o
raciocínio é o mesmo. Maior extensão da linfadenectomia aumenta a chance de
retirar mais linfonodo positivo levando a uma migração de pacientes de grupos
historicamente de melhor prognóstico para grupos de pior prognóstico (seta 2).
O efeito se torna ainda pior se considerarmos que no estadiamento TNM do câncer de próstata, só temos dois níveis, N0 e N1, com o N1 correspondendo a qualquer quantidade de N+. Mesmo a mais recente edição do AJCC e UICC publicada no início do ano (8a Edição, 2018) trás uma subcategoria pNmi (micrometástase), mas não faz menção ao número de linfonodos positivos.
Anulando o Fenômeno de Will Rogers
Uma forma de reduzir o viés causado pelo
fenômeno de Will Rogers é utilizar a densidade de linfonodos positivos (N+/Total)
como variável independente contínua em um modelo de Cox por exemplo.
Infelizmente os estudos tem dicotomizado essa variável para definir grupos de
maior risco como visto em Abdollah et al., 2014.
A melhor forma de lidar com o viés de seleção
promovido por esse fenômeno é (adivinhe... ele mesmo! 😊) o Ensaio Clínico
Randomizado (RCT). No RCT, os fatores de confusão são randomicamente distribuídos
entre os grupos. Pacientes N-, poucos N+ e muitos N+ serão semelhantemente
distribuídos entre os grupos antes do tratamento, ainda na baseline no início do estudo. A única
característica distinta entre os grupos seria o próprio tratamento, ou seja, a extensão
da linfadenectomia. Qualquer diferença na sobrevida seria então em decorrência
dessa característica.
O único estudo randomizado disponível com
resultados oncológicos de 1 ano é o de Lestingi et al., 2015 conduzido em São
Paulo com fundos da FAPESP. Esse estudo falhou em demonstrar ganho de sobrevida
livre de recorrência bioquímica após linfadenectomia estendida versus limitada.
Entretando, o seguimento é de apenas 1 ano e o estudo ainda está em andamento. Lembrar que, de acordo com os dados retrospectivos, seriam
necessários de 20-30 meses para observarmos diferença entre os grupos. J
Em 2014, um grupo chinês publicou um estudo
prospectivo com resultado favorável à linfadenectomia. Pouco tempo depois esse
estudo foi removido da literatura pela Elsevier por terem descoberto que o
autor principal falsificara parte dos dados.
Muito ainda se tem a esperar da
linfadenectomia. O que sabemos atualmente é que ela é uma ótima ferramenta
estadiadora com grande utilidade para selecionar pacientes para tratamentos
complementares como hormonio-terapia e radioterapia, mas, até o momento, carece da demonstração de efeito benéfico intrínseco. Podemos dizer que a linfadenectomia estendida
teria então um benefício indireto na sobrevida ao otimizar o estadiamento nodal
e consequentemente auxiliar na indicação de terapias complementares que,
comprovadamente, melhoram os desfechos.
Referências:
Lestingi,
et al. Extended Vs Limited Pelvic Lymphadenectomy During
Radical Prostatectomy For Intermediate And High risk Prostate Cancer: A
Prospective Randomized Trial. The Journal Of Urology. Vol. 193, No. 4s,
Supplement, Monday, May 18, 2015. Abstract em https://www.jurology.com/article/S0022-5347(15)02876-1/pdf
Choo
MS, et al. Extended
versus Standard Pelvic Lymph Node Dissection in Radical Prostatectomy on
Oncological and Functional Outcomes: A Systematic Review and Meta-Analysis. Ann Surg Oncol. 2017
Jul;24(7):2047-2054. doi: 10.1245/s10434-017-5822-6.
Fossati
N, et al. The
Benefits and Harms of Different Extents of Lymph Node Dissection During Radical
Prostatectomy for Prostate Cancer: A Systematic Review. Eur Urol. 2017 Jul;72(1):84-109. doi: 10.1016/j.eururo.2016.12.003
Abdollah
F, et al.
More Extensive Pelvic Lymph Node Dissection Improves Survival in Patients with
Node-positive Prostate Cancer. EUROPEAN UROLOGY 6 7 (2 01 5 ) 2 1 2 – 2 1 9. http://dx.doi.org/10.1016/j.eururo.2014.05.011
Berglund RK, et al. Limited Pelvic Lymph Node Dissection at the Time of Radical
Prostatectomy Does Not Affect 5-Year Failure Rates for Low, Intermediate and
High Risk Prostate Cancer: Results From CaPSURE. THE JOURNAL OF UROLOGY. Vol. 177,
526-530, February 2007. DOI:10.1016/j.juro.2006.09.053
Joslyn
Sa, Et Al.
Impact Of Extent Of Lymphadenectomy On Survival After Radical Prostatectomy For
Prostate Cancer. Urology 68: 121–125,
2006. Doi:10.1016/J.Urology.2006.01.055
Weight
Cj, Et Al.
Limited Pelvic Lymph Node Dissection Does Not Improve Biochemical Relapse-Free
Survival At 10 Years After Radical Prostatectomy In Patients With Low-Risk
Prostate Cancer. Urology 71: 141–145, 2008. Doi:10.1016/J.Urology.2007.08.027
Yuh B,
Et Al.
Reduction In Early Biochemical Recurrence Intermediate Risk Patients Undergoing
Robotassisted Extended Pelvic Lymphadenectomy For Prostate Cancer. The Journal
Of Urology. Vol. 193, No. 4s, Supplement, Tuesday, May 19, 2015.
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