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domingo, 1 de fevereiro de 2015

13 anos do ERSPC - O que muda?

"O rastreamento tem benefício
quando o diagnóstico ocorre a partir dos 60 anos..."

Ensaio originalmente escrito por mim em fev/2015
Atualizado em abr/2018
Leandro Frarlley


Saiu em dezembro de 2014 no The Lancet a atualização de 13 anos do ERSPC (European Randomised Study of Screening for Prostate Cancer). O tema não poderia ser mais controverso: o screening populacional do câncer de próstata.

Argumentadores favoráveis ao rastreamento tomam esse grande estudo como base, enquanto os contrários utilizam o estudo americano do PLCO e as recomendações da USPSTF.


Tentarei fazer em breve um ensaio comparativo desses dois trabalhos, mas por hora concentremo-nos aqui.

Agora, com 13 anos de seguimento do ERSPC, o benefício do screening populacional para câncer de próstata com PSA e toque retal se mostra bem mais evidente do que nas publicações anteriores.

Recapitulando para quem não tem os dados anteriores na memória: em 9 anos de seguimento, o ERSPC não havia demonstrado redução efetiva de mortalidade câncer específica com o rastreamento (HR 0,85 com IC95% 0,7-1,03). Entretanto, após 11 anos as curvas de mortalidade acumulada se afastaram mostrando redução importante do hazard de morte no grupo screening (HR 0,78 com IC95% 0,66-0,91).


ERSPC - Mortalidade Cumulativa Por Câncer nos Grupos Controle e Screening

Tradicionalmente, o tratamento do câncer de próstata apresenta benefício após 10 anos de seguimento, já que o tumor é de lento crescimento, demandando tempo para se tornar metastático e levar à morte. Antes de 10 anos, esses estudos não possuem desfechos suficientes para alcançar poder necessário à demonstração de redução de mortalidade no grupo triado.

O ERSPC reproduziu bem esse conceito. Somente após 10 anos de seguimento é que houve afastamento das curvas com diferença significativa na mortalidade a favor do grupo screening. Esta última análise, de 13 anos, corrobora essa linha de pensamento. O Hazard Ratio do grupo screening em relação ao controle foi de 0,79 (IC 95% 0,69-0,91), isto é, redução relativa de 21% no risco de morte por câncer de próstata. Análise de subgrupo mostrou que a população que mais contribuiu para essa redução de risco foi a de pacientes entre 65 e 69 anos de idade no momento do diagnóstico. Grupos de pacientes mais novos não tiveram benefício com o screening. Aguardemos!

Sob a ótica da efetividade, o screening teve NNI de 781 (IC 95% 490-1929), ou seja, é preciso triar 781 homens para que evitemos 1 morte por câncer. O NNT foi de 27 (IC 95% 17-66), isto é, para cada 27 pessoas adicionais diagnosticadas e tratadas do câncer, 1 morte é evitada. Deixei os intervalos de confiança de propósito para salientar a imprecisão da estimativa do efeito do rastreamento. De fato, o NNT variou bastante entre os centros europeus, o que pode estar associado aos esquemas de screening utilizados e ao perfil dos participantes em cada país.

Não é uma relevância expressiva! Muitos utilizam desses números para argumentar negativamente contra o rastreamento. São 781 convidados ao screening para 1 vida salva. De fato é um número alto, o que desencoraja investimentos em screening populacional.

Em adição, não é irrelevante o número de pessoas tratadas desnecessariamente devido ao sobrediagnóstico, sem contar o número de biópsias realizadas sem o devido benefício prático. Um NNT de 27 sugere que pelo menos 27 pessoas são submetidas a um tratamento que não lhes trará benefício algum, mas poderão experimentar seus riscos e sequelas como impotência, incontinência urinária e estenose anastomótica.

Mais que conflitantes, os estudos estão longe da perfeição. Um dos maiores pontos negativos, como é o caso do PLCO, é o grau de contaminação do grupo controle. É uma espécie de cross-over onde o grupo controle acaba também realizando screening, o que acaba por reduzir a diferença entre os grupos, como já comentado anteriormente nesse blog (relembre!).

Além do mais, a idade de início do screening também é assunto importante. Até o seguimento mediano de 13 anos, a tendência foi de benefício nos homens triados a partir dos 65 anos, momento que deveriam ser diagnosticados e operados. Isso significa economia de 15 a 20 anos livres de possíveis para-efeitos e sequelas relacionados a um tratamento mais precoce se começássemos a triagem aos 55-60 e não aos 40-45 anos como de costume. Mais uma vez o comportamento peculiar do câncer de próstata pode nos permitir diagnosticá-lo mais tardiamente e reduzir o chamado Lead Time (tempo entre o início das rotinas de triagem anual e o momento do diagnóstico - pretendo futuramente revisar a importância desse assunto 😶💭), sem comprometer a mortalidade.

Isso equivale dizer que usualmente o câncer de próstata parece trazer prejuízo apenas nas idades mais elevadas (com incomuns exceções). Então por que tratar o indivíduo aos 45 ou 50? Não seria razoável aguardar até os 60 ou 65 e ganhar 10-20 anos livres das possíveis complicações do tratamento? Serão 10-20 anos de melhor qualidade de vida sem os efeitos adversos das terapias e sem aparente piora da mortalidade. Alias, em 10-20 anos pode-se morrer até por outra causa. Então, por que não esperar?

Esta é uma pergunta cuja resposta os estudos ainda não trazem adequadamente, mas deixam boas pistas. Está aí o motivo de, cada vez mais, as sociedades urológicas recomendarem o screening em idades mais avançadas e com menor frequência para os indivíduos de baixo risco.

Com base nesses dados, ainda acredito que não deveríamos privar nossos pacientes da redução de seus riscos, por menor que sejam, mas também não podemos cair no paradigma da cartucheira, onde fitamos o olhar apenas para o benefício pontual e ignoramos os estragos causados em volta.

Se o screening populacional (em massa) com PSA e toque tem seus benefícios questionados (eu particularmente sou um forte questionador), me parece evidente que o screening oportunístico e organizado, individualizado, bem conduzido, por segurança deva continuar sendo feito. Porém (um grande porém!), com o foco na redução de excessos, PSA e toque devem ser apenas o primeiro filtro.


Referência: