"Escolhemos nossos médicos mais
baseados em indicação ou fama do que em
boas evidências empíricas"
Após receber um diagnóstico ou decidir realizar uma
cirurgia, todos os pacientes compartilham uma dúvida comum e fazem a si mesmos
uma simples pergunta:
Como escolher meu cirurgião?
É uma pergunta direta, cuja resposta não é tão simples
quanto parece e até médicos, que possuem vivência e relação profissional entre
as especialidades, ficam confusos diante tomada de decisão quando eles próprios são
os pacientes.
Ano passado, Aggarwal e outros autores publicaram um
estudo na European Urology, onde analisaram dados administrativos de saúde do
sistema inglês de 19.256 pacientes operados por câncer de próstata entre 2010 e
2014. Eles demonstraram que pelo menos 30% dos pacientes saíam de suas
localidade (onde tinham hospitais e médicos capacitados em prostatectomia
radical) para realizarem a operação em centros nacionais de referência. Foi
significativamente mais provável que pacientes procurassem centros com cirurgia
robótica (OR= 1,42; p<0,001) e urologistas conhecidos na mídia (OR= 2,18;
p<0,001) mesmo que para isso tivessem de viajar longas distâncias
compatíveis com percurso de até 12 horas. Proporcionalmente, é como se no
Brasil o indivíduo saísse de Ibipitanga-Ba e viajasse para São Paulo, ignorando
centros regionais como Vitória da Conquista, Guanambi, Caetité e Barreiras ou centros estaduais como Salvador (e isso acontece na realidade! J).
Estamos em tempos nos quais o empirismo científico é tido
como uma espécie de navalha de Occam. As melhores decisões médicas são aquelas
tomadas com base em evidências de qualidade, ensaios clínicos ou grandes
coortes. Mas, aparentemente, esse não é o caso quando o próprio médico ou o
hospital são os objetos de escolha.
Tradicionalmente, a reputação do cirurgião e/ou do centro
de tratamento que lhe dá suporte são os fatores de maior peso quando um paciente
tem a oportunidade de escolher o seu médico. Escolhemos nossos médicos mais
baseados em indicação ou fama do que em boas evidências empíricas. Isso parece
claro quando lemos o trabalho de Ziemba et al, 2017 publicado no JAMA.
Em pesquisa de opinião com quase 25.000 pessoas nos EUA,
mais de 50% dos entrevistados revelaram que escolhem seus cirurgiões levando em conta
se atendem seu convênio ou não. Justificativas como “indicação do
médico da unidade básica”, “reputação do cirurgião” e “reputação do hospital”
ficaram em segundo, terceiro e quarto lugar com 44%, 38% e 28%,
respectivamente. O questionário permitia múltiplas respostas. Apenas cerca de
7% responderam que decidem após pesquisar sobre o médico ou a unidade de saúde
em sites, por exemplo.
Parece claro que a escolha do cirurgião é baseada em
qualquer coisa, menos em evidência empírica. Isso pode não parecer um problema
para muitos, mas se considerarmos que o marketing pessoal e a autopromoção
estão hoje cada dia mais presentes no meio médico, o problema se torna maior.
Convido o caro leitor para uma breve digressão:
Muitos são os fatores que parecem influenciar os
pacientes e familiares na escolha do cirurgião. Para ser didático, vou
agrupá-los em quatro:
Fatores relacionados ao cirurgião;
Fatores relacionados ao hospital ou clínica;
Fatores relacionados ao custo;
Fatores relacionados ao paciente/familiares;
- Fatores relacionados ao cirurgião
Não há dúvida de que a reputação do cirurgião é um dos
principais fatores (se não o principal) que levam o paciente a procura-lo, como
demonstraram os estudos. O tempo de profissão, a fama, a atuação acadêmica e a
propaganda boca-a-boca positiva são os atributos relacionados.
Entretanto, não podemos esquecer que, principalmente nos
dias de hoje, as manobras de marketing profissional e a excessiva auto-valorização
nas mídias sociais têm influenciado bastante a percepção e a tomada de decisão
por parte do paciente. Será que aparecer na mídia é realmente uma boa evidência
de qualidade nos cuidados e de bons resultados?
- Fatores relacionados ao hospital ou clínica
O estudo de Aggarwal nos dá uma boa idéia do que acontece em sistemas nos quais o paciente tem a liberdade de escolher onde operar. É
importante deixar claro que me refiro a sistemas públicos onde os mais
variados níveis de atenção costumam funcionar.
No caso da prostatectomia radical, 33,5% dos pacientes
driblam o hospital mais próximo de sua casa para procurar um centro nacional.
Cerca de 12% deixam para trás três hospitais habilitados mais pertos para
acessarem um grande centro e 6,5% ignoram até 5 hospitais.
Os fatores relacionados a essa diáspora de doentes são
principalmente a busca e a crença em novas tecnologias (presença de centros com
robô) e a reputação das unidades com a presença de cirurgiões famosos.
O principal determinante de escolha do hospital/clínica
foi sua reputação na mídia (OR= 2,18; IC95% 2,05-2,31) à frente de características como ser uma unidade universitária (OR= 1,09; IC95% 1,05-1,15) ou possuir robôs (OR= 1,42; IC95%
1,33-1,52).
Aparentemente, a propaganda continua sendo a alma do
negócio! J
- Custo
Apresar de intuitivo, os
estudos não mostram dados diretos de custo. No entanto, podemos ter uma noção de
sua importância quando pouco mais de 50% dos entrevistados no estudo
de Ziemba consideraram a aceitação do convênio como o primeiro critério de avaliação na tomada de decisão para escolha de seu urologista.
- Fatores relacionados ao paciente/familiares
Independente dos fatores já citados, os pacientes possuem
inerentemente crenças e preferências. A idade do paciente parece ser um fator
importante. Aggarwal et al., demonstraram que paciente mais jovens buscam
centros mais famosos e mais distantes de suas residências. O jovem pode estar
mais antenado e pode ser mais propício a buscar locais com maior recurso
tecnológico. Aparentemente o paciente mais jovem é também o mais influenciado
pelo marketing.
A crença de que a tecnologia está sempre à frente (como o
robô na prostatectomia radical) e o apelo do marketing associado a essas
inovações, quase sempre ofuscam a realidade das evidências relacionadas. A
tomada de decisão fica mais a cargo da propaganda e do boca-boca do que
propriamente da evidência empírica de vantagem. Basta olharmos para o
comparativo entre prostatectomia radical robótica e aberta. Possuem os mesmos
desfechos, porém com custos diametralmente opostos, e, ainda assim, a influência
do marketing pode induzir o paciente a acreditar que optar pela robótica é evidentemente melhor.
Então, qual evidência usar?
Hoje, lidamos com pacientes cada vez mais exigentes e que
procuram conciliar custo com qualidade de cuidado. Essa é a tendência de toda
atividade inserida no mercado e não é diferente na medicina.
Estamos passando rapidamente daquilo que outrora era uma
relação primariamente humana entre médico e paciente para uma relação primariamente
profissional de prestação de serviço. Propaganda, apelo de marketing, aparição
em radio e TV, redes sociais... Estamos cada vez mais regulados pelo concorrido
mercado e pelo marketing. Não estamos acostumados a lidar com isso. Bom, talvez
sim, se você for um cirurgião plástico! J
A ideia de oferecer ao paciente uma ferramenta confiável
para escolha de seu médico pode ser nossa principal arma contra charlatões e
mercantilizadores da relação médico-paciente. Ao adicionar transparência na
equação de tomada de decisão, através da publicação de indicadores de qualidade
de assistência de cada profissional e de cada hospital, o paciente poderá ter
uma melhor avaliação do custo-efetividade por hospital e por cirurgião, e poderá guiar melhor sua tomada de decisão.
Acredito que essa transparência na relação
médico-paciente seja o ponto final da medicina baseada em evidência. Um caminho
inexorável, o melhor a seguir! Nosso modelo
científico assim determina.
Mas, nem tudo são flores!
Não sabemos ao certo como medir de forma justa os
indicadores de qualidade de assistência e como relatar as taxas de complicações
operatórias. Não há dúvida de que ferramentas estatísticas com correção para
fatores confundidores como idade do paciente, IMC, comorbidades e gravidade da
doença operada deverão ser rigorosamente aplicadas.
Alguns sites internacionais não oficiais, como o ProPublica, disponibilizam informações de cirurgiões de várias especialidades e de alguns hospitais para o público geral. Esses sites utilizam metodologias questionáveis
e são, talvez, até piores do que nada! L
Existem projetos bem elaborados e comprometidos com a responsabilidade
ética que disponibilizam ao público dados empíricos corrigidos para possíveis confundidores.
Na urologia temos o AQUA (AUA Quality Registry) dos EUA, o projeto do TheBritish Association of Urological Surgeons e o National Prostate Cancer Audit, também do Reino Unido, mas voltado apenas para dados de prostatectomia radical. Infelizmente, até
onde sei, ainda não temos ferramentas como essas no Brasil.
Veja abaixo a interface dos dados de um cirurgião no The
British Association of Urological Surgeons. *Domínio Público
Com ferramentas desse tipo, pacientes poderão comparar os
resultados e complicações de cirurgiões e hospitais com médias regionais,
nacionais e internacionais, aumentando a racionalidade e a evidência de sua
tomada de decisão.
Epílogo...
A transparência sempre foi
importante no ambiente médico. Ela nos coloca como pessoas tratando de pessoas,
põe nossos pés no chão. Redireciona-nos para a real natureza do conhecimento médico-científico,
a natureza probabilística. Coloca o paciente como corresponsável pela tomada de
decisão e clarifica a real proposta da medicina curativa: oferecer tratamentos
e não propriamente a cura.
No caso específico desse
ensaio, as ferramentas de transparência e tomada de decisão para escolha do
cirurgião e do hospital, ajudarão a combater o charlatanismo e a propaganda
enganosa. Adicionalmente, médicos de unidade básica poderão direcionar seus
pacientes a cirurgiões e hospitais mais próximos de suas residências com base
em evidência de qualidade. É o nosso
futuro e é bom que assim seja! Bom para nós médicos, cirurgiões e pacientes. Bom
para o sistema como um todo.
Referências:
Ziemba JB et al. Consumer Preferences
and Online Comparison Tools
Used to Select a Surgeon –
Research Letter. JAMA Surgery. Published online January 4, 2017
Aggarwal A, et al.
Determinants of Patient Mobility for Prostate Cancer Surgery: A Populationbased
Study of Choice and Competition. Eur Urol (2017), http://dx.doi.org/10.1016/j.eururo.2017.07.013
PROPUBLICA - https://projects.propublica.org/surgeons/
National Prostate Cancer
Audit - https://www.npca.org.uk/
The British Association of
Urological Surgeons – Radical Prostatectomy - https://www.baus.org.uk/patients/surgical_outcomes/radical_prostatectomy/default.aspx